
porque me sentia útil, ensinando e aprendendo ainda que não tivesse clareza do papel de leitora, conselheira e amiga que D. Antônia desempenhava na minha vida pessoal e acadêmica.
Nesse contexto singular e interiorano, tornei-me leitora com a ajuda dos livros, das pessoas, da escola, da vizinhança, da Igreja, dos avós (lia para minha avó materna antes de dormir e ela também me dizia do seu sonho de saber ler aquelas histórias tão bonitas, como as da Bíblia, dos folhetos da missa dominical, das fotonovelas) e, em especial, da leitora amiga, que povoa carinhosamente minhas memórias - D. Antônia.
Ao vir estudar em Jacobina, as visitas a D. Antônia foram ficando cada vez mais raras, mas, sempre que voltava a Itapeipu, ia visitá-la até que, finalmente, soube de sua partida deste plano terreno, restando agora as lembranças e retornos possíveis através da memória e das marcas desses encontros tão marcantes. A saudade eterniza-se como se eterniza sua história aqui neste texto, a qual ficaria sem registro se não fosse o encontro salutar com a Etnopesquisa-formação que, como um insight, possibilita um retorno ressignificado a minha estória de educadora que se imbrica como minha estória de leitura e de uma iniciante pesquisadora que, inquieta por natureza, vai preenchendo as lacunas de sua formação, as quais nunca serão totalmente completadas, preenchidas, dadas a incompletude da natureza humana e da própria linguagem. Eni Orlandi (2002, p.52) afirma que: “Assim como o texto não se esgota em um espaço fechado, o sujeito e o sentido também são caracterizados pela sua incompletude”.
Somente quando fui realizar o curso de pós-graduação em Leitura: teoria e prática, na UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em 1996, é que uni as duas pontas da minha vida e compreendi que minhas histórias com os livros e a leitura me impulsionavam sempre a buscar e estudar sobre leitura e linguagem como projetos de vida, de implicação política, de inserção social pela linguagem. Nesse sentido, muito de minha história se presentifica e se materializa. E faço das palavras de Eliana Yunes as minhas: “Ler é colocar-se ativamente no mundo. Ler os muitos discursos de mundo, a organização pública, os traçados das cidades, as civilizações diversas [...] implica uma aguda consciência de estar no mundo e interagir com ele”[1]
Assim me coloco no mundo; lendo a mim, aos outros, as cidades, os lugares em geral, o meu fazer pedagógico, numa atitude de permanente indagação. A partir dos
[1] Eliana Yunes, In: Ora, Direis, leitura! Jornal A Tarde 23.10.98.
acervos diários, dos acervos institucionais e sociais vamos constituindo-nos, afetando e sendo afetados, influenciando e sendo influenciados. Afinal, acervo é tudo aquilo que acumulamos diariamente com a cooperação do outro e que nunca se esgota. À medida que compartilhamos vamos enriquecendo mais e mais e nunca diminuirá. Nesse sentido, Nanci Nóbrega (1995, p.4) afirma que[1]: “Se leitura é espaço privilegiado de significados, ACERVO é concretude desta significação [...] é preciso que desconfinemos os acervos trancados nas bibliotecas, nas salas de leitura, nos armários e gavetas, nas nossas almas”. (NÓBREGA, 1995 p. 4)
A clareza que tenho, quando explicito aos alunos o poderosíssimo terreno da linguagem como possibilidade concreta de participação social, agudização do senso crítico, construção de sentido, defesa dos seus argumentos, a fim de fazer da sua leitura e sua escrita a sua comunicação com o mundo, me fez também fazer o curso de Letras. Às vezes percebo, com tristeza, que muitos alunos meus estão na universidade sem se darem conta do curso que estão realizando.
Assim, fica a certeza de que formar leitores, segundo Sérgio Rivero [1995?], é lidar com a afetividade e perceber que o livro está, por alguma razão, presente em nossas vidas. Ele guarda informações impressas para a posteridade, para o corpo, para a alma, tem–se no livro a possibilidade de encontros calorosos.
É exatamente por estas razões que minha história de leitora, imbrica-se com minha história de educadora e de pesquisadora. As interrogantes questões acerca do ensinar/aprender são vistas como uma atitude dialogante, portanto, compartilhada sempre.
1.1 Itinerância na Universidade.
Formando professores / minha autoformação: pedaços de mim na academia
Se a pesquisa é uma atividade cognitiva, então a experiência de pesquisa dos alunos dos cursos de formação de professores deve ser um exercício prático. (Kincheloe, 1991).
[1] NÓBREGA, Nanci. In: A caverna, o monstro e o medo. Rio de Janeiro: PROLER/FBN, 1995. Col. Ler e Fazer, 4 (Fragmentos).
Diante das configurações acerca de formação de professores, faz-se necessário contextualizar a década de 80, por fazer parte do espaço/tempo da minha formação, buscando ampliar a caracterização acerca das políticas públicas de formação docente, em que milhares de profissionais também eram formados neste país e no nosso estado, Bahia, tanto nas capitais quanto em cidades interioranas.
Em estudo recente para a sua tese de doutorado na UFBA/FACED, o pesquisador Elizeu Clementino Souza[1] (2004) faz uma cartografia bastante elucidativa sobre as políticas de formação docente implementadas na década de 80, coincidindo com a época em que me formava como professora pela rede pública de ensino.
Segundo o autor supra, no contexto da década de 80, cabe destaque os trabalhos de Gadotti (1987), Savianni (1980 e 1983), Libâneo (1982) e, especificamente, Mello (1982), uma vez que as perspectivas reprodutivistas e críticas da educação serviram de suporte para que diferentes pesquisadores avançassem na compreensão de diferentes processos e fenômenos educativos, dentre os quais, a formação de professores.
Os estudos realizados pelos autores citados e tantos outros, a exemplo de Candau (1983), Freire (1985), destacam a década de 80 como a que se configura pelas constantes mudanças no cenário político-econômico e social, tanto na sociedade brasileira quanto na esfera internacional, por significativas transformações que caracterizaram e sacudiram estruturas solidificadas, a exemplo da queda do Muro de Berlim, “colapso do socialismo real” e consequentemente a gênese das teses da crise das classes, o que denunciava, de certa forma, o fim das ideologias e da “história” como alternativas ao modelo capitalista vigente.
Por outro lado, a emergência de uma reorganização da sociedade civil, conclamando por exercício da cidadania e fortalecimento da democracia através da esfera pública, buscando a garantia dos direitos sociais, fez fortes marcas na trajetória da formação de professores.
No Brasil, os cenários marcantes são os interesses/processos sobre a constituinte e a centralidade que geraram o debate sobre a ordem social e econômica. As eleições diretas para a Presidência da República, frente a uma ditadura militar que perdurou por mais de vinte anos, representam, finalmente, os anseios por outros movimentos sociais que se caracterizem por uma democracia popular participativa e engajada num projeto de sociedade inclusiva, no âmbito dos direitos sociais.
[1] O pesquisador analisa a partir das Histórias de vida, a formação de professoras da UNEB – Universidade do Estado da Bahia.
Pensar então a formação docente nesse bojo, implica entender as políticas de formação empreendidas historicamente na sociedade brasileira, no sentido de que as mesmas reforçam as desigualdades e contribuem para uma formação centrada na racionalidade técnica, a qual vem marcada pela consolidação da crise de identidade dos profissionais da educação e de uma respectiva descaracterização do trabalho docente.
É evidente que o acelerado desenvolvimento das tecnologias da comunicação e informação, o debate e a implementação do neoliberalismo e da economia globalizada marcam, de forma contundente, os problemas no tocante ao desenvolvimento pessoal/profissional de professores/professoras e ratificam o movimento de crise de identidade, de profissionalização do trabalho docente.
A visão tradicional parece supor que o papel do professor muda em cada conjuntura, uma vez que as políticas públicas de formação, currículos, cursos e instituições formadoras ainda estão centradas na dimensão tecnicista de formar professores, com reflexos de visão tradicional, reduzindo a educação ao “saber fazer”.
Na visão de Miguel Arroyo (1999), os saberes e valores docentes acumulados são desprezados e ignorados nos programas de qualificação, pois quem pensa a formação docente ignora que deve partir da formação já constituída, uma vez que é preciso pensar o papel dos professores não como prático, tarefeiro, mas pensar como profissionais que têm historicamente papéis definidos na sua condição de educador.
Qual a dimensão então do formar? Qual seria o papel social do educador?
É evidente que é preciso pensar uma outra prática de formação docente, de forma que as histórias, as experiências, saberes e dizeres dos professores não lhes sejam negados. Considerar o papel social do educador pressupõe considerar sua história, identidade, seu pensar e agir produtivos, uma vez que pensar a formação docente de forma dicotômica é um retrocesso. Não seria o permanente ofício de mestre o de formar, humanizar, valores, mentes, hábitos, identidades, produzir e apreender o conhecimento?
Ainda se percebe uma educação precedente, polarizada, marcada por dois tempos como assinala Miguel Arroyo (1999) o tempo de aprender e de fazer, de formação e de ação; teoria x prática, pensar x fazer, trabalho intelectual x manual.
É ainda essa concepção que vem marcada nas políticas públicas de qualificação e formação docente.
É exatamente, nesse cenário, neste bojo de inquietações e controvérsias, que um grupo de profissionais/pesquisadores promovem no período de 16 a 19 de novembro de 1982, na PUC/RJ - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pelo Departamento de Educação, o Seminário “A didática em Questão”, cujo objetivo central foi o de realizar uma revisão crítica do ensino e da pesquisa em Didática, ampliando a discussão sobre a prática educativa e a didática e a formação de educadores. Como resultado do seminário, surge um documento final que, em linhas gerais, problematiza o ensino de didática, indicando que a mesma não pode ser dissociada da questão da formação de educadores, e esta, por sua vez, se articula com a análise do papel da educação na sociedade em que vivemos, haja vista que toda prática social é histórica e, neste sentido, se orienta para a dominação ou para a libertação.
Dentre os pontos críticos do ensino da Didática, foram apontados os seguintes: conteúdo fragmentado, desarticulação entre teoria e prática, consumismo de teorias importadas, o qual é desvinculado da problemática do “para quê” e do “porquê” da atividade educacional, pressupõe implicitamente o princípio da neutralidade científica e técnica; redução ao aspecto instrumental-dimensão técnica de prática docente dissociada das demais dimensões. Daí o tecnicismo que a caracteriza. Além disso, está pouco relacionada com a pesquisa na área.
A Didática passa, neste período, por uma visão crítica, uma vez que se tem a consistência da necessidade de superação de uma visão meramente instrumental e pretensamente neutra do seu conteúdo. Vive-se um momento de perplexidade, de denúncia e anúncio de novos caminhos, novas propostas que pensem a prática pedagógica concreta e articulada com a perspectiva de transformação social que o mundo e o Brasil vivem nos anos 80.
Neste mosaico de crises, denúncias, revisão e análise das políticas públicas, currículos, formação/qualificação docente, estamos sendo formados professores (eu e milhares de outras pessoas); cuja preocupação central, a nós endereçada, era com a eficiência técnica. Aliada a essa preocupação, há uma luta pela melhoria das condições de trabalho do profissional de educação.
Outro marco, nesta discussão, é o surgimento do III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto (1980-1985), o qual propõe uma de suas metas prioritárias o incremento da educação no meio rural. Entretanto, na prática, o distanciamento se faz evidente, uma vez que a escolarização das populações rurais não é uma questão que apenas recentemente venha merecendo destaque nos planos oficiais. Neste mesmo contexto, é produzido o documento como síntese do Encontro Nacional de Reformulação dos Cursos de Preparação de Recursos Humanos para a Educação, realizado em Belo Horizonte em novembro de 2003 e publicado no Caderno CEDES 17 – O profissional do ensino - debate sobre sua formação (1989).
Os trabalhos empreendidos na década de 80 que tematizam sobre a formação, tomando como princípio as teorizações sobre as perspectivas reprodutivistas e críticas da educação, mereceram destaque.
É fundamental reconhecer também o papel e significado exercidos pelas entidades e associações científicas, bem como pelo Movimento de Reformulação dos cursos de formação de Professores, desde a década de 80, que fez emergir diversas pesquisas sobre a revisão dos Cursos de Pedagogia, ampliando-se para a revisão dos cursos de formação de educadores, nascendo, desses fatos, a ANFOPE – Associação Nacional para Formação de Professores; reafirmando assim, seus princípios políticos em diferentes documentos, por entender que a formação de professores deve estar inserida na crise educacional brasileira.
Não é de estranhar que o cenário/contexto referente à formação de professores em relação aos aspectos referendados no PNE (Plano Nacional de Educação) sobre a formação dos professores em relação à década de 97 e a corrida desenfreada para “otimizar” as estatísticas, nos cabe indagar: A quem interessa esse processo de formação? Formar em relação a quê? Dimensões políticas, técnicas, práticas, reflexivas, científicas?
Quais questões vêm sendo implementadas pelo MEC no tocante à formação dos profissionais da educação? A LDB – Lei de 9394/96 - estabelece outro locus de formação e privilegia a implantação da certificação, equivocando-se quanto à qualificação, uma vez que considerar tempo/espaço, sistematização construída pelas associações científicas de formação continuada trazem uma concepção de formar que não se reduz ao ensino, tampouco a uma listagem pontual de competências e habilidades requeridas ao profissional contemporâneo.
Há, nesta regulamentação, um descompasso e falta de compromisso apresentado pelas políticas públicas ao tratar da formação de professores, quando desvincula a pesquisa como fundante para a prática pedagógica. O próprio Curso Normal Superior é um exemplo desse equívoco, o que, conforme documentos da ANFOPE, enfraquece, sobremaneira, a posição dos movimentos sociais organizados em torno da formação de profissionais da educação. O que evidencia o atendimento aos interesses dos organismos internacionais, Banco Mundial, BIRD, priorizando a formação em serviço, em detrimento de uma formação inicial que deverá ser colocada em princípios de qualidade.
Para Elizeu Clementino (op.cit), deveria existir uma formação assentada à realidade da sociedade e do contexto educacional brasileiro, uma vez que, ao manter a descontinuidade entre formação e exercício profissional, reafirma-se a crise de identidade do professor, corroborando para o constante e crescente movimento de proletarização do trabalho docente, sem considerar as péssimas condições salariais e de trabalho no cotidiano das escolas.
Investir na formação de professores exige uma concepção de formar que considere políticas éticas e comprometidas com a qualidade da formação e do trabalho pedagógico/educativo, articulando sempre a pesquisa no processo formativo, possibilitando uma sólida formação teórica e não um aligeiramento da formação, como se tem presenciado em todo o país.
É claro que, ao trilharmos sobre os estudos que tratam da formação docente, embrenhamo-nos numa tessitura polifônica com embates teóricos claros, a partir de diferentes pesquisas produzidas desde a década de 80, no que se refere ao estado do conhecimento sobre formação de professores, trazendo inúmeros princípios teóricos, práticos e epistemológicos sobre o ensino e a pesquisa. O nosso interesse, neste capítulo, é ampliar o contexto local – onde me formei professora – ao contexto geral que influenciou e definiu a minha/nossa formação docente, uma vez que como eu, milhares de docentes formados, nesta década (80), têm a formação permeada pelas referências, embates, contradições, alternativas e revisões críticas pelas quais passaram as políticas de formação docente, os currículos e as instituições responsáveis por esta formação. Somos todos, parte dessa bricolagem teórica, epistemológica, socioeconômica e cultural que não poderia estar dissociada da nossa formação, haja vista a não neutralidade do sujeito frente a tantas demandas que emergem “ad infinituum”.
Cabe a cada um, revestir-se das concepções nas quais acredita e realizar, ao menos em parte, o que nos afirmou Paulo Freire (2001, p.36) “Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo”.
Com a certeza de que sempre estamos sendo, e nunca estaremos formados, e sim em constante formação, é que a minha itinerância na universidade foi velando/desvelando muitos sentidos da formação que recebi, a qual constantemente exige ressignificação.
Comecei minha trajetória acadêmica na UNEB - Campus IV/ Jacobina, como professora substituta. Embora já houvesse uma ligação com a mesma por ter sido aluna, funcionária da biblioteca e secretária administrativa.
O ‘olhar do estrangeiro’[1] sobre minha prática docente é um esforço hercúleo para perscrutar a prática que vela/desvela minha condição humana de incompletude, mas também possibilita um olhar sob novo prisma, não mais banalizado e clicherizado, mas estrangeiro. Olhar como se estivesse vendo pela primeira vez, possibilitando assim, perceber nuances, movimentos, errâncias, nunca observados antes. Auto-reflexão profissional com implicação política que me permita não apenas ver, mas enxergar.
Um exercício prático que permite deslocar-me na tentativa de suspender os preconceitos e os sentimentos demasiados de justificativas, melindres, ao escutar sensivelmente o outro, num ato avaliativo necessário e formativo por excelência, no qual a importância, ao sinalizar falhas, lacunas, não é no sentido de desqualificar o outro e o seu trabalho, mas um movimento de olhar a partir do outro, do que dizem e pensam sobre você e seu trabalho. De como afetamos e somos afetados. É um movimento cíclico de ação/reflexão/ação, que acredito ser fundamental. Se pergunto aos meus alunos, aos professores com os quais trabalho, sobre a minha atuação, é porque estou expondo-me e querendo, de fato, saber o que pensam acerca dos questionamentos que faço. Então deverei “preparar-me” para ouvir/ler o que eles têm a dizer, caso contrário, não me arriscaria a solicitar-lhes que avaliassem o meu trabalho.
Segundo Pedro Demo (2000), a avaliação do aluno, como componente natural e necessário do processo de formação da competência deve existir ao lado da avaliação do professor no duplo sentido de auto avaliação, mas principalmente de avaliação externa. A razão básica é a mesma: formar e recuperar permanentemente a competência, o que implicam avaliação como parte intrínseca do processo. Vale ressaltar, portanto, que é preciso ter coragem para ouvir do outro não apenas elogios, mas críticas que pontuam a necessidade de rever instrumentos de avaliação em termos de número. (Consideraram às vezes, muitos por semestre.). Outras sinalizam que os laços afetivos devem ser mais fortalecidos com todos e não com parte da turma.
Segundo Kincheloe (1997), a pesquisa-ação como práxis nos faz repensar, remodelar, ressignificar, a prática pedagógica como princípio fundante de uma Etnopesquisa formação centrada no ethos. Exploramos assim, nossa autoprodução, entendemos melhor quem somos. Permite-nos uma atitude reflexiva para as nossas vidas profissionais, motivando-nos a contextualizar os eventos que acontecem e a ordem implícita que nos conecta a eles.
[1] Expressão utilizada por Nelson Brissac.In: O Olhar. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Na condição de educadores, colocamo-nos à disposição para cultivar a empatia, as dores, as alegrias, os sonhos, próprios dos seres humanos (alunos e professores). Aguçamos a nossa habilidade para entender as motivações nossas, de nossos alunos e colegas, haja vista que, de forma significativa, vamos analisando e melhorando nossa prática pedagógica, pois, ao aprendermos, vemos o que vemos, estamos pensando sobre o pensar, analisando as forças que moldam nossa consciência, colocando o que percebemos num contexto significativo. Segundo Kincheloe (1991), a pesquisa-ação crítica torna-se um veículo para a consciência conectada, é uma metacognição na combinação com seu sistema crítico de sentido.
O exercício do olhar é seletivo, limitado, resultado, portanto, de nossas crenças, valores, subjetividades. É claro que, nesse bojo, sabemos que os resultados mensuráveis não dão conta do processo, por ser uma visão parcial do trabalho docente, mas assinala pontos sobre os quais devemos nos debruçar para melhor entendê-los.
Os depoimentos/avaliações que seguem, de alguns alunos, servem como recorte para cada vez mais analisar a minha atuação. E sempre a partir delas, perceber que, ao formar, estamos continuadamente sendo formadas.
AVALIAÇÃO DOS ALUNOS REFERENTE AO DESEMPENHO DOCENTE[1]
“Sempre pontual, assídua, muito segura e dinâmica. Tem um relacionamento igual para com todos e apresenta-se muito motivadora do aluno”.
Ana, continue essa profissional fantástica que você é. E é claro, mude para melhor.
Admiro você e espero um dia ser igual, ou melhor, que você. Quem sabe???
(Ludiléia- 1º semestre de Letras/UNEB- 2001)
“Acredito que a pontualidade, a assiduidade, o comprometimento, a segurança dos conteúdos e demais atitudes em você, Ana Lúcia, contribuem e contribuíram para que seu trabalho fosse significativo. Sugiro apenas que a demanda de avaliação seja menor por causa do tempo limitado do semestre.” (Alidéia- 8º semestre- Letras - 2001).
“Superou todas as minhas expectativas. Foi uma das professoras mais próximas, amiga e companheira que eu tive durante toda a minha jornada. Gostaria que tivesse mais tempo para discutirmos textos e trocarmos experiências, como aconteceram nos primeiros encontros”.
[1] Análise das avaliações escritas realizadas a cada final de semestre letivo. (a identificação do aluno na avaliação , é opcional).
(Carla - Eziquiela -Letras- UFBA/FACED - 2002)
“Muito pontual, assídua, ótimo domínio do conteúdo e comprometida. Sugiro ser mais flexível, ouvir mais o aluno. Ser menos exigente”.
(Aluno de Enfermagem - UESB-2000)
“Ótimo relacionamento interpessoal, ótima segurança dos conteúdos. Já tinha ouvido falar da sua exigência, e foi o que mais nos ajudou como alunos de Pedagogia. A variedade da metodologia e avaliação dá chance de reconstrução, abertura ao diálogo e se empenha em observar e analisar cada produção nossa, apesar de ser um pouco rigorosa”.
(Sic).
(Aluno (a) do Curso de Pedagogia - UESB 2000)
“Muito pontual e comprometida. Deve ser mais próxima da turma como um todo. Muito segura da disciplina - Língua Portuguesa. As avaliações foram sempre revistas/refeitas, mas é rigorosa, exigente. Discute bastante os assuntos.” (Sic). (Aluno (a) do 1º semestre de História UNEB – 2002) “Grande competência, gentil, humana, inteligente”.
Descobre nos alunos a raiz do saber. Aprendemos muito com você. Você nos deixou marcas profundas. Esperamos contar sempre com sua amizade e seu companheirismo. A sua passagem pela Rede UNEB 2000 deixará marcas em Morro do Chapéu”.
(Trechos da avaliação de algumas professoras-alunas do Curso de Pedagogia da Rede UNEB 2000.) Avaliação realizada em 14.02.01
“Assídua e pontual. Ótima segurança dos conteúdos e dinâmica em suas atividades. Avaliação eficaz e precisa. Impecável na associação prática x teoria. Permeou muito bem a pesquisa em sala e difusão dos conteúdos”.
Seu trabalho reflete uma profissional imbricada com a educação, ao mesmo tempo em que revela um brilhantismo notável. Na minha visão foi impecável. Parabenizo você e agradeço por ter me permitido captar um pouco de teu saber.” (Sic)
(Nonato - Letras-1º semestre/2000 - UNEB)
Esses recortes avaliativos, me possibilitam, continuadamente, refletir acerca do meu desempenho, da formação dos meus alunos e da minha própria formação. De acordo com René Barbier (2000), é desvendando o vetor conhecimento empírico/aplicação prática, que conheço o mundo e vou conhecendo-me.
Os níveis de implicação considerados por René Barbier (2000), são três: o nível psicoafetivo, o nível histórico-existencial, o nível estrutural-profissional. No nível individual, o pesquisador logo se defronta com sua implicação psicoafetiva, uma vez que, na pesquisa-ação, o objeto de investigação sempre questiona os fundamentos da personalidade profunda. O desejo de saber que se investe numa atividade de pesquisa é, ao mesmo tempo, genital (preencher um vazio, fechar os espaços do não–saber) e oral (porque o saber é alimento).
A implicação histórico-existencial é exatamente pelo engajamento no aqui-e-agora de sua pesquisa, que a implicação histórico-existencial se configura. Perceber o tema ligado à sua vida e sua história, de alguma forma, revela o nível de imbricamento, portanto de implicação, cuja troca com os sujeitos da pesquisa é enriquecedora é de fato, uma troca. Essa implicação histórico-existencial refere-se também a outros fatores. Enquanto sujeito social depende de hábitos adquiridos, esquemas de pensamentos e de percepção sistemáticos, que representam um molde maleável para a minha prática científica, ligados à minha classe social de origem.
O duplo processo de interiorização da exterioridade, e vice-versa, é uma interrogação sobre os limites do ponto de vista objetivo e objetivante da pesquisa. Levar em conta o ethos e o habitus de nossa classe social de origem é, antes de qualquer coisa, um exercício de poder. No nível existencial, o projeto ligado à práxis passa por uma totalização em quatro etapas: desejo, vontade, decisão e ação. Nesse sentido, consoante o autor, a implicação histórico-existencial, em síntese, significa que, enquanto ser social, o sujeito questionador estará sempre numa relação dialética com o objeto questionado através do canal essencial da práxis.
O nível estrutural-profissional da implicação é, por excelência, o da mediação. De todas as mediações possíveis família, religião, política, sexualidade, jogos. A atividade profissional e o seu princípio de realidade permitem avaliar a importância das duas dimensões já examinadas. A implicação estrutural-profissional consiste, pois, na procura dos elementos que têm sentido como referência ao trabalho social do pesquisador e ao seu enraizamento sócioeconômico na sociedade contemporânea. Nesse sentido, fica evidente que os níveis de implicação se interpenetram e agem uns sobre os outros. Há momentos em que nos percebemos na pesquisa com maior evidência num/ou nível, como por exemplo o psicoafetivo, noutro já se expressa com maior vigor o estruturalprofissional, o qual, conforme assinalamos, é o nível da mediação, avaliando as dimensões da família, da política, da sexualidade, de forma a observar a importância deles no contexto social da pesquisa, o que implica dizer que nossa pesquisa é atravessada constantemente pelos níveis explicitados, ainda que não tenhamos consciência disso.
Implicação no campo das Ciências Sociais é definido por René Barbier como:
Engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis científica em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passada e atual nas relações de produção e de classe [...] de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento. (BARBIER, 2000 p.120).
Sou solidária à ideia do autor exatamente porque percebo a minha implicação tanto afetiva, como profissional, ligada à minha história de vida e de leitora, bem como minha história de educadora neste projeto de Histórias de leitura na 3ª idade: memórias individuais e coletivas, conforme já sinalizamos na primeira parte ao historiar o motivo/gênese da pesquisa.
Pela explicitação nos itens Memórias primeiras, formação de leitor, fica evidente o quanto esse projeto de pesquisa é muito mais que uma simples pesquisa. É um projeto de vida que se imbrica com o meu engajamento e inquietações profissionais já delineados no item das memórias primeiras. Na primeira fase da pesquisa, desenvolvi com alunos da 5ª série da Nossa Escola Ideal, em 1998, Histórias de Leitura dos alunos da 5ª série de Nossa Escola Ideal, cujos resultados me impulsionaram ao desdobramento da pesquisa, uma vez que, em virtude do tempo restrito, não pude desenvolver a pesquisa das duas categorias (alunos de 5ª série e 3ª idade jacobinense). Entretanto, somente com o encontro com e etnopesquisa formação (disciplina realizada no Mestrado com o Professor Roberto Sidnei) e com a idéia de elaborar um ensaio - ampliado posteriormente, neste primeiro capítulo - em que narrasse como me tornei educadora, é que percebi as minhas implicações com a pesquisa e com a minha história pessoal e profissional. Liguei as diversas pontas de minha trajetória que, de forma inconsciente, me impulsionaram na constante busca dos estudos da linguagem, mais especificamente da leitura/escritura. Daí, atar as pontas diversas do meu percurso até chegar finalmente ao item primeiro desse capítulo, que é a explicação do surgimento do tema, do desejo que a linguagem/leitura/escritura impregnam no meu viver e no meu pesquisar.
Esse estudo é um desdobramento do resultado da pesquisa realizada em Curso de Especialização (1998), cujo resultado foi o trabalho monográfico intitulado: Histórias de Leitura dos alunos da quinta série da Nossa Escola Ideal (Jacobina-BA)[1]. Os resultados decorrentes da pesquisa realizada e supracitada nos dão, em parte, um
[1] Para maior esclarecimento ler Monografia final do Curso de Especialização em Leitura: Teoria e Prática.UESB, 1998 de autoria de Ana Lúcia Gomes da Silva.
embasamento teórico-metodológico, além de muitas reflexões e indagações que pretendemos elucidar e/ou problematizar a partir dos referenciais estudados e das conclusões preliminares registradas.
Os resultados obtidos sinalizam fundamentalmente que as memórias individuais imbricam com as memórias coletivas e desvelam que o fazer e a diversidade da realidade são de uma engenhosa complexidade, mas não se torna impossível buscar “fios e recortes”, para costurá-los, cerzi-los e reconstruí-los sempre, uma vez que esse processo de (re)construção / (des)construção é contínuo e infinito.
As narrativas de alunos e professores, através de suas memórias pessoais, deixaram também à mostra traços da memória coletiva e suas implicações nas suas vidas. As influências recebidas no lar, na escola, com os amigos, dão conta de que, a partir de determinados momentos, a memória pessoal funde-se com a memória social/coletiva; prova cabal de que o homem é influenciado e influencia o mundo ao seu redor.
As falas dos leitores pesquisados e dos pais dos alunos entrevistados apontaram, conforme consta no relatório final, para representações sociais da leitura cuja singularidade marca a história de cada sujeito com a leitura e os reflexos da escola sobre as escolhas das mesmas. Mais particularmente deixa à mostra o quanto a Escola deixa de realizar satisfatoriamente um trabalho qualificado, mas que, também, em grupos menores de docentes, já se faz notar uma constante preocupação com ensino da leitura/escritura e suas reflexões na formação do leitor ativo e crítico que se pretende.
A Escola, certamente, poderá contribuir muito mais com a formação do leitor crítico que pretendemos formar. Salientamos ainda, que nosso conceito de leitor está respaldado no conceito de Paulo Freire, trabalhado na pesquisa mencionada, que diz: “o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (FREIRE, 1985, p.11). É nessa leitura que acreditamos, na que nos move ao encontro do conhecido, do desconhecido, do dócil, do incômodo, e que nos enriquece e nos transforma de algum modo. Para tanto, se faz necessário ler tudo o que nos rodeia através do sentido táctil, olfativo, visual, auditivo, entre outros, deixando vir as memórias e as experiências passadas que fazem parte do percurso do leitor. É fazer o que nos assinala Paulo Freire: “a leitura da palavramundo” (FREIRE, 1985, p. 12). Portanto, não nos interessa apenas a leitura do texto escrito, daqueles que possuem o domínio do código escrito, mas a leitura no seu sentido macro, uma vez que ler não é ler apenas o texto escrito, mas as inúmeras linguagens a postos no mundo.
É inegável o papel da Escola na difusão da leitura; mas o resultado dessa leitura ficou restrito ao caráter informativo, pragmático e objetivo, representando o sistema vigente sem alterá-lo. Assim, a leitura realizada enquanto reprodução, valorizando a paráfrase do texto lido, mantendo uma recepção passiva e mecânica, cujas respostas às questões são prontas e acabadas, ligadas a questões estéreis e sem aprofundamento, não indica para nós, através dos resultados parciais, a formação do leitor ativo, que constrói o seu discurso e sentido a partir de suas leituras.
Constatamos, em nossa pesquisa, que a Escola[1] deixa de realizar trabalhos, sobremaneira significativos, ao valorizar, por excelência, os textos escritos em detrimento de outras linguagens tão ricas e diversificadas. Entendemos que ambos têm valores semelhantes e que devem ser explorados diferentes contextos com finalidades. Constatamos também, com tristeza, que, ainda que o texto escrito seja valorizado, nem sempre a seleção do mesmo prima pela qualidade da leitura escolhida. O trabalho desenvolvido com a mesma fica restrito às questões de decodificação acerca de personagens, enredos, provas escritas.
Para continuar realizando meu desenvolvimento profissional em exercício, participei de diversas comissões no âmbito da Uneb, dente as quais destaco:
-
Elaboração do projeto de Mestrado em Educação e Diversidade;
-
Projeto Biblioteca comunitária do Cabula/UNEB: entrelaces na construção de uma biblioteca comunitária;
-
Estágio Supervisionado – campus IV e Comissão central de Estágio;
-
Revisão da ficha de avaliação CAPES para mestrados profissionais em educação;
-
Seleção de alunos regulares para o Mestrado Profissional em Educação e Diversidade;
-
Relatório Diagnóstico do Sistema de Bibliotecas da UNEB- SISB/UNEB. 2007;
-
O estudo dos gêneros do discurso acadêmico-científico: normalização[2005].
-
. Concurso Público Docente da UNEB - Leitura e produção de texto/Língua Portuguesa/Português Instrumental. [2009].
-
Seleção pública para professor do terceiro grau - metodologia/estágio supervisionado da língua portuguesa. [2006];
[1] Nesse caso, a escola indicada na nossa pesquisa. Outras podem também realizar essa prática, mas não temos registros, apenas indicativos a partir de um estudo feito, nesse caso, a pesquisa realizada em Nossa Escola Ideal.
-
Avaliação dos Projetos de Pesquisa da área de Letras , Lingüística, Letras e Artes no Processo de Seleção de Projetos e Bolsistas de Iniciação Científica. [2009];
-
Organização de eventos acadêmico- científicos;
-
Pareceres técnicos para projetos de pesquisas e artigos científicos de colegas da Uneb.
Atualmente sou docente permanente do Programa de Pós-graduação em Educação e Diversidade (PPED), campus IV- Jacobina e coordenadora do Projeto de Pesquisa PROFISSÃO DOCENTE NA EDUCAÇÃO BÁSICA DO PIEMONTE DA DIAMANTINA: formação, contextos de diversidade e práticas pedagógicas, com a participação de dois subprojetos de Iniciação científica (IC) sob a minha orientação. Além disso, atuo como vice- coordenadora do supracitado Programa. Líder do Grupo de Pesquisa Diversidade, Formação, Educação Básica e Discursos (DIFEBA), da Universidade do Estado da Bahia- UNEB e pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Docência, Narrativas e Diversidade - DIVERSO também da UNEB, atuando como vice- coordenadora do Projeto de Pesquisa Profissão Docente na Bahia.
Além das atividades acadêmicas, de pesquisa, ensino e extensão, as atividades de gestão na Universidade e fora dela, foram ricos aprendizados para a minha formação. Destaco dentre estas experiências: Coordenação do Sistema de Bibliotecas da UNEB (SISB/UNEB) de março de 2010 a março de 2011. Atuação como Diretora da Educação Básica do Estado da Bahia - DIRED/SUDEB- SEC de 1º de abril de 2011 a 15 de janeiro 2015. Serviço de Coordenação Pedagógica e COLLE (Coordenação de Linguagem, Língua, Leitura, Escrita e Oralidade), no Colégio Yolanda Dias Rocha- Jacobina- BA.
Jacobina, setembro de 2015.
Memorial Acadêmico: as palavras, textos, e vozes que me constituem e me forjam polifonicamente
Nasci na páscoa, numa quinta-feira santa, gestada de palavras, símbolos, vozes e gestos que me iniciaram no mundo das linguagens, como sujeito de linguagem. Páscoa significa passagem e é considerada uma celebração importante da Igreja Cristã, onde se comemora a ressureição de Jesus Cristo. Assim, minha primeira alfabetização se deu na compreensão dos sentidos diversos e polissêmicos da palavra passagem.
Como farei a minha passagem na terra, gestarei e produzirei minha existência? Quais marcas deixarei e quais levarei quando retornar para a pátria espiritual? Qual profissão escolherei?
O tempo foi passando no pacato distrito de Itapeipu, pertencente a cidade de Jacobina- BA, em que vivi até os meus treze anos, convivendo com idosos diversos: minhas avós materna e paterna, minha avó emprestada, amiga de minha mãe, D. Aquilina, de D. Lina, avó de minha amiga Maria Bethânia, e D. Antônia, minha amiga, com a qual eu passava horas e horas (conversando) conversando sobre os livros que lia. Todas essas idosas, me diziam da vontade de aprender a ler, escrever, dos seus sonhos de saberem decifrar o que estava escrito nos livros e revistas que eu lia para elas.
Muitas histórias eu ouvi de cada uma delas nas noites enluaradas na porta das suas casas. Mas foi com D. Antônia, que estreitei os laços de leitura na cozinha de sua casa.
Somente ao perceber os objetivos da nossa pesquisa é que me dei conta, conscientemente, de que de alguma forma, estava retomando um dos fios do rizoma, de um determinado ponto: o da minha história de leitora. Entretanto, eram as narrativas e fabulações da 3ª idade, que objetivava apreender ao máximo, através de suas memórias em diferentes situações analisadas, de forma a traçar o perfil dos leitores da 3ª idade, suas ambiências de leitura e as contribuições deste público leitor concreto e singular para a formação do leitor ativo e includente, que ao utilizar suas fabulações e histórias de vida/de leitura, nos permite perceber a relação que estabelecem com a leitura, manifestações textuais e os diversos efeitos de sentido que são construídos nessa tríade leitor/texto/ contexto social onde se inserem os sujeitos da pesquisa.
Com outros fios do rizoma fomos tecendo a nossa pesquisa, observando que nesses fios cabe a poesia, a inventividade, que não exclui o método, o rigor, não perde de vista os objetivos da pesquisa, antes, o diz de um lugar outro, utilizando os recursos técnicos necessários ao conjunto da itinerância de pesquisa, os quais são necessários a todo trabalho científico.
Quisemos antes de qualquer coisa, escolher nos fios do rizoma outros caminhos que “descentrados” se entrecruzassem e fossem dando consistência à nossa pesquisa em toda a sua construção, sem com isso perder a poesia, a leveza de trazer as histórias, fabulações dos idosos, como mais um saber que emerge, “saberes emergentes”, tão discutidos no contexto da pós-modernidade. Não apenas os saberes dos idosos, mas de tantas outras ‘minorias’ excluídas e estigmatizadas, a exemplo do homossexual, dos índios, dos negros e povos do campo.
Parodiando o carteiro no diálogo com o poeta, Teodorico informa ao poeta que escrevera um livro e que não reparasse nos defeitos, pois quem escreve esvazia a alma e ele tinha esvaziado a alma, tudo, não era possível. Ao que acrescentaríamos que intencionalmente corremos o risco ao escolher alguns fios do rizoma e manter vivo em nossa pesquisa o fio da poesia aliado a outros fios: do método, das técnicas, dos teóricos. Se conseguimos tal intento, não temos certeza, mas que as lacunas serão preenchimentos com o outro sujeito que colabora com o texto – o leitor – disso somos sabedores. É a partir da leitura de Dona Antônia, Dona Lina, Dona Aquilina, que povoaram meu mundo infantil e ainda povoam em meus escritos e pensamentos, que foram “puxados” outros fios para, em diferentes contextos, idades, lugares, as histórias de alguns idosos se ampliarem e dialogarem com a de tantos outros, idosos ou não, que guardam na alma o poder da vivacidade que os anos não conseguem apagar.
Ainda segundo o carteiro Teodorico no texto Sondagem de Carlos Drummond (1999), “Tudo é encadeado neste mundo. Ou devia ser. Uma coisa nunca acontece sozinha, nem acaba sozinha”.
Concordamos com a proposição de Teodorico, e mais, percebemos que a motivação, o desejo de traçar as histórias de leitura na 3ª idade, tinha um encadeamento, um já dito, que não aconteceu sozinho, mas foi tecido em outros acontecimentos que vão dando sentido ao existir humano e, portanto, ao fazer, quer escrevendo poemas, quer fazendo pesquisas, quer escrevendo textos de diversos gêneros textuais. O importante é o sentido que cada fazer, cada contribuição e cada partilha trazem aos outros. Eis a nossa contribuição – o registro das vozes anônimas, ou não, dos leitores da 3ª idade, que eternizadas pela escrita se materializam no relatório da pesquisa pela dissertação de
Texto de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Sondagem”, que traz a história do carteiro e do poeta, através dos encontros semanais entre ambos ao entregar correspondências. In: A bolsa e a vida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.
[1] Texto de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Sondagem”, que traz a história do carteiro e do poeta, através dos encontros semanais entre ambos ao entregar correspondências. In: A bolsa e a vida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.
mestrado, a qual foi transformada em livro em 2015 pela Paco Editorial, já tido lançado nos seguintes eventos: Desleituras em série de 21 a 24.10.15- Uneb/Jacobina, Jornada Acadêmica do Mestrado Profissional em Educação e Diversidade- MPED em 27.11.15 no Seminário anula da UAT da UNEB dia 09.09.15 e 04.11.15 na Livraria Saraiva do Salvador Shopping.. Continuemos, pois, a nos enredar nos fios da leitura....
1.1.Como me tornei educadora: memórias implicadas
Memórias primeiras: década de 70.
No processo desencadeado pela memória, há o retorno de um tempo e de um lugar outros. Produz sempre um deslocamento e alteração” (Bethânia Mariani, 1997).
É com um olhar reminiscente, caloroso e emotivo, que relembro as minhas primeiras cenas ‘brincantes’ como professora. Sempre professora; raramente trocava de papel com minhas colegas, as quais, frequentemente, representavam ser minhas “alunas”. Chateava-me quando queriam sair da brincadeira, pois já tinha usado minha tarde para preparar meus exercícios, minha aula ‘inteirinha’. Utilizava-me da inventividade e ficava horas pensando em como reproduzir exercícios para todas (colegas) sem precisar copiá-los um a um. Pegava os carbonos de minha mãe (que bordava), e, intrigada, ia com força cobrindo as frases do exercício, a fim de que saíssem legíveis na cópia. Mas esse método não me satisfazia, por ser um exercício apenas reproduzido de cada vez. Queria que as folhas restantes também fossem copiadas. Certa vez, peguei um ferro de engomar, coloquei brasa, depois balancei ao vento até que as brasas acenderam e esquentaram o ferro. Depois dessa operação, passei o ferro na folha escrita, tendo por baixo um carbono e uma folha em branco. Para minha desolação, verifiquei que a folha em branco continuava branca. Apenas algumas manchas azuis vindas do carbono, mas as letras não eram copiadas. Frustrada, ficava a pensar em outro método de trazer uma novidade para a aula.
Após descobrir que os pedaços de louça branca (dos pratos da minha mãe), riscavam bem no chão e na madeira, utilizei-os bastante. Exultava de felicidade. Daria aula com um quadro (tábua encontrada no quintal de casa) e com giz (pedaços de louça). Pouco tempo depois, passei a usar pedaços de cal petrificados que faziam letras mais legíveis. Até que
Refiro-me às brincadeiras de criança nas quais representava o papel de professora, continuadamente. As brincadeiras na verdade, eram muito mais que isso, eram possibilidades reais de experienciar o gosto de ter alunos e a eles ensinar. Era de certa forma uma projeção futura que eu não saberia explicar porque tanto me atraía brincar geralmente de professora, quando poderia brincar de tantas outras brincadeiras.
[1] Refiro-me às brincadeiras de criança nas quais representava o papel de professora, continuadamente. As brincadeiras na verdade, eram muito mais que isso, eram possibilidades reais de experienciar o gosto de ter alunos e a eles ensinar. Era de certa forma uma projeção futura que eu não saberia explicar porque tanto me atraía brincar geralmente de professora, quando poderia brincar de tantas outras brincadeiras.
percebi que poderia catar pedaços de giz no quadro da escola, já que os métodos dos exercícios não tinham saído como planejara. (Estaria eu buscando criar meus etnométodos?).
O tempo corria célere, os cursos dos estudos iam adiantando-se ao longo dos anos. Ao concluir a sétima série do 1º grau, minha mãe insistiu que teríamos que estudar em Jacobina, pois o ensino do interior não daria conta de nos formar com a qualidade que ela desejava. Além de não ter segundo grau, na vila de Itapeipu.
O sonho da minha mãe era nos formar, eu e minha irmã, em professoras, uma vez que o pai dela não permitira que ela realizasse seu sonho - ser professora. Mesmo que sua mestra da época insistisse bastante para que meu avô deixasse a filha estudar.
Em 1980, cheguei a Jacobina para estudar a 8ª série no Centro Educacional Deocleciano B. de Castro. Saindo do mesmo, em 1983, formada em magistério.
A cada final de ano, no período das férias, voltava à vila de Itapeipu e às roças de meus tios para rever parentes e amigos. Para mim, era a glória, pois eu era, para eles, um referencial e aproveitavam minhas férias para que eu desse aulas aos meus primos. Vibrava, alegremente. Como a família é grande, tinha ou havia vários primos na minha faixa etária e outros tantos mais novos, que estudavam na roça ou nas vilas próximas: Itapeipu e Paraíso.
Tudo acertado entre meus tios, eu iniciaria as aulas num prédio recém - construído pela prefeitura, que levava o nome de meu avô materno, Ovídio Gomes de São Paulo, o qual ficava na fazenda de um dos meus tios, o tio Nalvo. As casas dos meus parentes eram próximas umas das outras. Cerca de 40 a 60 minutos de caminhada até a escola.
Meus tios resolveram entre si que eu receberia pelas aulas dadas. Cada um daria uma quantia para a minha remuneração. Ainda não era formada, fazia o primeiro ano de magistério.
As aulas transcorriam num clima de muita amizade. Aprendizes, eu e meus primos - íamos lendo, escrevendo, contando, realizando atividades diversas. Utilizava muito o entorno da escola para solicitar-lhes pedrinhas, folhas, areia, flores, insetos. Com esses elementos, líamos, fazíamos contas, analisávamos os vegetais, folhas, animais. Tudo dentro da minha limitação de estudante de magistério, com conhecimentos superficiais acerca do que estudávamos. Também fazia no quadro e nos cadernos deles, os exercícios rotineiros de leitura, gramática, matemática.
Fazia o melhor - trabalhava com a alma, mas é claro que me faltava experiência, estudo, para compreender minha prática inicial e limitada.
Nessa tessitura, cujos fios condutores foram ganhando cores e novos pontos, formei-me professora. Agora, com o olhar de hoje, percebo bem as lacunas, limitações, contradições, próprias de um caminhar iniciante, novo, desconhecido...
Cada vez mais faz sentido, para mim, o que afirmara Paulo Freire (1985), ao diferenciar professor de educador. Segundo o autor, professor é o profissional que dá aulas, é o técnico, o cumpridor das funções estabelecidas pelo estado, enquanto que o educador não se limita a essas funções, é mediador de sonhos e esperanças, conhece a história do aluno, age como educador; ensina para além do conteúdo, observando a condição humana como processo primeiro, e integral. Ampliando o que assinala Freire, acrescentaríamos que ser educador é em verdade a maturidade do professor que ao articular as tarefas citadas, faz não apenas as tarefas destinadas ao professor, mas educa continuadamente o ser em formação, sem deixar de dar aulas, avaliar, corrigir trabalhos, mas não o faz como uma mera função técnica e sim, aliada à condição primeira do educador a de semear sonhos, mediar esperanças e intervir no processo formativo do educadando sempre.
Acreditamos que em virtude do contexto em que estabeleceu essa comparação, a função de professor era dicotômica de educador, hoje, após tantas conquistas e ressignificações do ofício de mestre, percebemos na de forma relacional em que o todo e as partes fazem parte do processo formador de professores e alunos. Em que a técnica não tem primazia sobre o humano, ou pelo menos não deveria ter, uma vez que já vislumbramos outros cenários e espaços educativos em que as experiências de ensinar e aprender são levadas em conta, a exemplo da educação nos movimentos populares dos sem terra, dos acampamentos, dos espaços alternativos dos bairros, dentre outros.
Em 1984, com 18 anos, iniciei oficialmente minha carreira no magistério, lecionando numa escola particular como professora da primeira série. No mesmo ano, iniciei meu trabalho no colégio Municipal de Jacobina, como professora de Língua Portuguesa de 6a à 8ª séries no turno noturno.
Foi uma experiência desafiante e singular. Quanto tive que estudar, criar minhas estratégias, métodos, e avançar ano após ano, até conquistar o respeito e a amizade de todos. Alguns alunos chegaram a enviar-me bilhetes, cartões, falando do quanto me admiravam e gostavam de mim. Tinham se apaixonado pela professora! Recebi, lia–os com carinho e respeito, mas sempre soube diferenciar os papéis. Isso não quer dizer que condene quem descobre que há uma sintonia entre professor/aluno, namoram e constroem suas relações. É natural acontecer. Conheço vários exemplos entre colegas meus da Universidade em que trabalho (UNEB), e todos estão casados atualmente.
Sei que marcas foram deixadas, dentre as quais jamais professor algum pode saber ao certo até que ponto nossos ensinamentos fizeram nossos alunos mais felizes, com maior inserção social a partir dos estudos, melhores seres humanos. As marcas de ensinar e aprender são inúmeras e transcendem à nossa análise e ao nosso olhar em meio as singularidades e subjetividades dos sujeitos envolvidos. Entretanto, a gratidão/emoção ao reencontrarmos nossos alunos e eles assinalarem para nós o quanto marcamos suas vidas e somos referência/modelo, são as verdadeiras relíquias do educador comprometido consigo e com o outro. Segundo Heidegger (2002), o ser no mundo é o ser do cuidado, uma forma de relacionar-se com todas as realidades circundantes e estar presente. Afinal, a base da existência é ser- no- mundo com – outro. Acreditando nessa premissa, é que me disponho sempre a problematizar a minha formação docente e a formação daqueles que por nós são formados. Sabiamente, Cora Coralina assinala que: “feliz é aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.”[1]
1.1 O contexto e suas significações: acervos, lastros e rastros ...
Minha formação leitora – ambiências de leitura
É isso a leitura: reescrever o texto da obra dentro de nossas vidas. (Roland Barthes, 2002)
Na vila onde morei até os 14 anos, não havia muita coisa para se fazer. Às vinte e umas horas, apagavam-se luzes a motor e tínhamos que obrigatoriamente ir para casa. Às
[1] Entrevista concedida à TV Educativa.[1974?]
vezes arriscávamo-nos ficar um pouco mais olhando a lua, ouvindo estórias, cantando, conversando sobre as nossas vidas. (Nossas e dos amigos).
No colégio, não existia biblioteca e na vila também não. A leitura então era algo muito especial, seu acesso restrito aos que podiam vir a Jacobina comprar livros. Tinha uma amiga, que era filha única. Sua mãe comprava muitas coleções de histórias do folclore brasileiro, histórias infantis, em quadrinho e outros. Sempre pedia a Jeanne que me emprestasse seus livros para ler. Devorava-os, deitada ou sentada na sala ampla e cimentada de minha casa. Como marcou minha vida! o livro Meu pé de laranja lima, (Mauro de Vasconcelos), também emprestado pela amiga Jeanne.
O colégio GICOITA - Ginásio da Comunidade de Itapeipu,- foi fundado em 1976 e, como informado anteriormente, não possuía biblioteca, sendo implantada apenas em 2001, conforme dados emitidos pelo corpo diretivo da escola4. O acervo da mesma é considerado ainda insuficiente, o que nos faz analisar que, desde a época em que lá estudei, até a data dos “dados coletados”, abril de 2003, a realidade infra estrutural de promoção de leitura/formação do leitor através do acervo bibliográfico, continua praticamente sem nenhum avanço. Ampliado esse dado ao contexto brasileiro, teremos uma ratificação desse índice alarmante, uma vez que 67% das escolas brasileiras não possuem bibliotecas e 75% da população5é considerada analfabeta funcional.
-
Dados analisados a partir das respostas dadas ao Questionário respondido pelo diretor do colégio à época.
-
Jorge Werthein. In: Vencendo a Cegueira. Disponível em www.cvl.clubevirtualdalinguagem.2002
O contexto educacional em que fomos formadas – eu e milhares de professoras – sinaliza os problemas existentes e as dificuldades em reverter os dados micro/macros, considerando as últimas pesquisas e avaliações realizadas por órgãos oficiais, a exemplo do SAEB – Sistema de Avaliação do Ensino Básico, PISA[1] – Programa Internacional de Avaliação de alunos que tiveram como resultados na leitura/escrita um índice considerado muito inferior, ficando o Brasil no ano de 2000, em último lugar no PISA, dentre os 32 países que participaram da referida avaliação.
Evidencia-se, portanto, que a questão do ensino/aprendizagem traz, em seu cenário, inúmeras crises, que angustiam os que fazem o quotidiano da escola e buscam, a despeito de todas as dificuldades, realizar um ensino de qualidade significativo, visando à formação do leitor ativo e autônomo que se pretende.
Segundo Nilda Alves (1988), vivemos a crise da escola na perspectiva de uma crise global ética, cultural, social, institucional, econômica e de paradigmas que não dão conta da complexidade do mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que lutamos pelo resgate da categoria do magistério e pelo desejo comum de participar da construção de uma escola pública de qualidade para os excluídos, o que sempre nos pareceu ser um direito de todos.
É um convite a puxarmos os fios de nossas memórias coletivas e individuais, de mulheres, professores, mães, homens, idosos, para tecermos nossa história comum de professores e professoras que, em diferentes décadas, foram formadas e continuam “ad infinitum” em formação e em constante luta por uma escola em que a voz dos professores e seus saberes sejam respeitados, uma vez que historicamente sempre aparece alguém para falar em nome dos professores e apresentar mudanças, projetos, capacitações, consultorias. Depois da euforia inicial, o cenário volta a ser como dantes e continuam os professores a ressignificar, desafiar os problemas que continuam velhos.
Diante da problemática da formação docente, Nilda Alves (1988, p. 10) questiona: Como pode atuar competentemente quem é desqualificado em seu saber? Como conciliar a contradição entre a recomendação de partir da realidade do aluno e a “sutil recomendação” de seguir o “programa” que desconhece a realidade dos alunos e precisa ser cumprido?
A certeza que temos é de que, mesmo diante de tantas incertezas e contradições, há os que atuam no cotidiano da escola e lutam bravamente para transformá-la num espaço de partilha, respeito às diferenças, espaço de criação e constante diálogo.
No cenário micro, o Colégio GICOITA, tinha em seu quadro discente, 26 alunos, tendo ampliado para 30 no ano de 77, mais dois em 78, decrescido 1 em 1979.
No período de 1980 a 1983, o quadro discente, total era de 137 alunos, o que demonstrava uma significativa ampliação, em virtude da demanda dos alunos residentes na zona rural.
A realidade de GICOITA quanto ao quadro docente no período de 1976 a 1983 era de 37 professores, sendo 32 formados em magistério e 05 em 2° grau completo (cursos profissionalizantes). Atualmente (2003), o quadro docente conta com 09 professores, sendo 01 com pós-graduação, 02 com graduação plena, 04 com nível 02 (Curso Caxiense), 02 com nível 01 (magistério), o que indica a melhoria da qualificação no referido quadro local.
[1] Cf. www.enem.gov.br / www.inep.gov.br. Fonte: MEC/ Inep/Daeb.
O colégio GICOITA oferece ensino da 1ª à 8ª série do ensino fundamental, numa infraestrutura considerada regular, contando com 06 salas de aula, 01 cantina, 03 sanitários, 01 quadra esportiva, 01 sala de direção.
Foi informado, pela diretoria/secretaria, que os professores mudaram de nível nos últimos anos, e, embora o colégio não conte com os serviços de Coordenação Pedagógica e nem de condições de trabalho satisfatórias, se esforçam para garantir o desenvolvimento das atividades de ensino a contento, o que confirma a reflexão traduzida por Nilda Alves, (op. cit), sobre os docentes que optam por acreditar nas mudanças da escola e, por isso, continuam lutando diariamente por um ensino significativo.
Depois dessa caracterização/contextualização necessária para o entendimento local e panorâmico da situação educacional, voltemos ao colégio GICOITA nos idos de 78/79 quando um fato marcante instala uma nova fase no referido colégio, provocando uma euforia geral. Chegaram ao colégio (da vila) a coleção de Jorge Amado e de outros autores brasileiros (como não tinha biblioteca, os livros foram guardados na sala da direção). A coleção de Jorge Amado era procuradíssima por conta do livro Dona Flor e seus dois maridos. A escola só o emprestava para quem já estava na oitava série. Eu não podia. Era leitura proibida para mim. Minha irmã lia e o escondia para que eu não o pegasse. Quando descobria debaixo da cama lia corridamente, nervosa e com medo que alguém me flagrasse. Sempre que acontecia chegar alguém, era advertida e afastada da “leitura proibida”.
Com a vinda da minha amiga Jeane Ferreira para estudar em Jacobina, minha biblioteca ambulante terminara. Tinha que descobrir outra fonte. Outras amigas que tinham irmãs mais velhas morando em Salvador e Jacobina também tinham livros. Foi assim que passei a ler os livros que D. Antônia, uma senhora de mais de 70 anos, emprestava-me (avó de uma das minhas amigas). Os livros eram de uma das suas netas que morava em Salvador. Na maioria, eram romances de Sabrina, Júlia, telenovelas, livros de faroestes (livros de bolso).
Lia também as revistas de faroeste (Tex e seu amigo William) e os livros de faroeste, (livros de bolso), emprestadas do amigo Antônio Romerilson, que colecionavaos. Apenas eu e a sobrinha dele, Maria Bethânia, líamos esses livros, pois eram leituras marcadamente para meninos.
Assim, começava uma nova história na minha vida. Eu levava para minha casa de dez a quinze livros e tinha um prazo para entregar, pois eu prometia muito cuidado e também não demorar com os livros. D. Antônia sorridente dizia: “não demore muito não, que é para você me contar as histórias”.
Voltava semanalmente à casa de D. Antônia e, na cozinha de sua casa, ia contando as histórias de cada livro. Os detalhes, os personagens, as tramas. Ela, imediatamente, opinava, discordava, explicava o porquê de suas idéias. Em certo ponto da conversa, ela às vezes, solicitava que lesse um trechinho de qualquer parte para ela ouvir. Absorta ouvia-a e percebia no seu semblante uma tristeza e deduzia que era porque não sabia ler o que estava escrito nos livros. Nesses instantes, ela pegava algum exemplar e folheava-o. Revelava para mim o quanto deseja saber ler aquelas histórias. Emocionávamos juntas. Conversávamos horas e horas e não percebíamos o tempo passar. Esses encontros duraram algum tempo e novas remessas de livros eram levadas e trazidas. Num dos encontros, disse a D. Antônia, que, embora fossem outros livros, as histórias se repetiam. Amor proibido, homem másculo, castelos, cidades belas, amores impossíveis. Sempre o mesmo enredo. E, para minha surpresa ela também já estabelecia essas relações e passou a me contar uma história e mostrar que era quase igual a uma outra que eu contara no último encontro. Sem saber, estávamos analisando a nossa própria autonomia de leitor.
Na minha ignorância, não sabia que D. Antônia era uma grande leitora. E que leitora!!! Quantas inferências e lições preciosas me passava a partir dos meus relatos de leitura. Ela era leitora de mundo, de ouvido, lia[1] para além da decodificação das palavras! Ela fazia a leitura da palavramundo, como assinala a premissa freiriana. Construía sentido na leitura que fazia e se permitia dialogar com os autores. Discordando, concordando, reelaborando suas conclusões tal qual, nos pede a leitura.Tensão, debate, desconfiança, fruição... Os livros que líamos já não mais nos satisfaziam, íamos sendo leitoras seletas, escolhíamos as nossas leituras com a exigência de quem vai aprendendo a separar o “joio do trigo”. Mas, para isso, foi preciso ler o joio e dele tirar preciosas colheitas. Foi preciso conhecer, saborear. A leitura é banquete, alimento precioso às nossas vidas.
É impossível não me emocionar ao compreender depois de tantos anos o quanto foi significativa a minha parceira de leitura para a minha formação leitora. E eu que achava que lia para ela, apenas porque dominava o código escrito. Na minha análise, eu era quem levava a ela a minha “iluminação” através das histórias. Como saía dali feliz! Primeiro,
[1] Concepção de leitor e leitura trazida por Paulo Freire no livro O Ato de ler: três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1985.

